Todo o corpo é político - SNBA
A exposição “Todo o corpo é político” apresenta uma proposta do Coletivo de Curadores da NOVA FCSH, composto por alunos da pós-graduação em Curadoria de Arte da Universidade Nova de Lisboa - Faculdade de Ciências Sociais e Humanas de 2022. A exposição ocupa uma das salas de exposição da Sociedade Nacional de Belas Artes.
A exposição, segundo a folha de sala, “interroga a complexa relação entre propriedade e liberdade, tendo o corpo como elemento central dessa discussão”. Essa interrogação é realizada por três núcleos, que reflectem sobre “ o corpo enquanto propriedade”, “enquanto identidade individual” e a “ sua relação com a comunidade”.
No primeiro núcleo encontramos quatro obras com associações mais facilmente identificadas com o corpo. A relação entre propriedade e fisicalidade é mais evidente neste núcleo, sobretudo com a corporalidade da peça O prazer é todo meu V, de Patrícia Garrido. A forma orgânica remete-nos para um corpo, ou para a ausência de um. É um retrato do vazio, da voluptuosidade sugerida do corpo que encontramos. A peça fala-nos também do prazer - do título - feminino. A escolha da cor, a partir de uma paleta de maquilhagem, é intencional no seu calor e organicidade, reforçando a ideia de prazer e sedução. O prazer feminino, assim afirmado e assumindo a sua própria possessão. É uma possessão que, no entanto, é livre, e é nessa dicotomia que a obra - no que fica e no que está ausente - se afirma.
Também sobre o prazer, a sua possessão por parte do detentor do corpo ou de outro, nos fala a obra de Jamie Welsh, The ambassador’s suite (Rob and Adam). Nesta fotografia, encontramos um momento que antecipamos o momento imediatamente antes. As duas figuras em descanso aparecem descaracterizadas, anónimas, com roupagens que sugerem um encontro sexual. São dois homens, em descanso cada um em sua cama, num quarto de hotel onde um quadro com um querubim renascentista vela sobre eles. A tensão é palpável, apesar de ser uma cena aparentemente tranquila. São corpos não identitários, apenas corpos que pertencem ao prazer de alguém.
A propriedade e a pertença são temas também evidentes na obra Headbanger de Fernão Cruz. A alusão à prática de headbanging dos fãs de heavy metal é imediata, mas sugere também um acto mais imediato, a ideia de bater com a cabeça na parede. De facto, a obra sugere esta acção: a cabeça, como um pêndulo, oscila livremente pela pintura. A pintura, em camadas, é simultaneamente um ocultar de matérias e imagens e um descortinar das mesmas, encontrando vestígios de outros níveis em pedaços retirados. Uma ocultação e redescoberta de dimensões, conseguida através de uma actividade repetitiva e aparentemente inútil, que simultaneamente destrói e descobre. Até que ponto é o corpo dominado pela mente, até que ponto o corpo pode rebelar-se contra a ocultação deliberada da mente?
A obra Unprecedented times creatures (anthropause) de Mané Pacheco, sugere-nos uma pertença a um ser comum. Os corpos que vemos são híbridos entre natureza e indústria, numa comunhão inquietante que nos fala da intervenção humana na natureza que define a era antropocénica. As colunas vertebrais feitas de fitas de munição são violentas na sua artificialidade, tornada ainda mais inquietante pela introdução de elementos orgânicos, como o osso de veado - que sugere um crânio ou uma bacia. É um corpo em guerra consigo mesmo, com a sociedade que o rodeia, um corpo feito para lutar e que sugere a sua própria propriedade, a sua própria beleza e a sua própria liberdade.
O núcleo seguinte reflecte sobre a identidade, ou a propriedade e a liberdade do corpo como identidade. A obra Auto retrato da dupla Sara & André apresenta-nos duas fotografias tipo passe dos artistas dentro de duas sumptuosas molduras douradas. A justaposição da fotografia que encontramos nos documentos de identidade com uma moldura reminiscente dos retratos régios leva-nos a ponderar sobre o valor da identidade mas também sobre quem a define. É a nossa identidade algo nosso apenas, ou pertence a um país, a um governo?
Já a obra Me, Me, Me, Me de Adriana Progranó leva-nos a ponderar a identidade face ao nosso corpo e ao dos outros. As linhas definem de fronteiras no espaço, uma clara definição onde o “eu” acaba e o “tu” começa. O “eu” é livre de definir o seu espaço, o qual é extenso, e existir dentro dele, num traço livre e naive que é no entanto assertivo e directo.
Descendo as escadas, entramos no último núcleo da exposição, em que se pensa o corpo em função da comunidade. Aqui, o ambiente escuro e intimista não remete para comunidade, mas sim para uma introspecção do corpo no contexto de comunidade. Este ambiente integra-se perfeitamente na obra Ninguém, de Tiago Baptista. A tela carregada de preto, onde se destacam as pinceladas como vultos de uma multidão que se encerram em volta de uma única palavra, Niemand (ninguém em alemão). Quem define quem é alguém ou ninguém? Quem é o proprietário dessa identidade, o próprio ou a comunidade? A obra fala-nos também de solidão e isolamento, mesmo no centro de uma comunidade.
Também a obra Home 1 de Kosuke Tsumura nos leva a questionar a identidade do corpo na comunidade, bem como a sua função. A peça, um conjunto de calças e casaco construído com uma multitude de bolsos, pretende funcionar como uma casa para quem não a tem. Nestes bolsos cabe uma vida, um abrigo que propõe a possibilidade de uma existência mais fácil numa sociedade cada vez menos comunitária. No entanto, a transparência do material expõe muito mais do que o utilizador possa querer mostrar, obrigando-o a uma existência exposta, mais ainda do que a ausência de casa já obriga. Serão estes também corpos-ninguéns?
A obra Body is ⅔ of Water, de Inês Brites, traz-nos para terreno mais físico, estabelecendo uma ligação com a fisicalidade orgânica do corpo humano e a natureza. Somos água, mas somos também plástico. Seremos mais próximos da natureza ou das criaturas híbridas de Mané Pacheco? A obra de Brites questiona a relação do ser humano com a Natureza, de que forma o nosso crescente consumo é sustentado por uma natureza que nos é intrínseca mas que insistimos em destruir.
A obra encerra esta reflexão sobre a fisicalidade, a identidade de género e a percepção social do indivíduo. No vídeo Entre Actos #1 de Vasco Araújo, uma figura masculina vestida de Medusa canta um fado sobre o destino. Vemos a personagem pelo espelho, tal como o herói Perseu, num momento de tensão entre nós, observadores, e o observador que é simultaneamente obra de arte. Esta personagem é ambígua em todos os aspectos, existindo num espaço entre o ser e não ser, convidando-nos a descobrir qual é a verdade, ou a aceitar a sua ambiguidade. É afinal, este, o destino desta Medusa, o seu fado parece ser ficar para sempre aprisionada entre possibilidades, talvez à espera de um herói que a liberte.
A exposição, ainda que pequena, consegue com as obras escolhidas gerar uma reflexão multifacetada sobre o corpo e as suas diversas dimensões na actualidade. Transcendendo a mera fisicalidade, as obras escolhidas convidam-nos a reflectir sobre a forma como se encara hoje em dia as noções de propriedade e liberdade face à experiência humana e a vivência em sociedade. Num momento em que o corpo se expande além da sua mera presença física, é uma reflexão bem vinda, concisa e relevante e atenta às mudanças de paradigma que vivemos actualmente.