Atravessar uma Ponte em Chamas - Berlinde De Bruyckere

A nova exposição a solo de Berlinde De Bruyckere no recém inaugurado Museu de Arte Contemporânea apresenta-nos um conjunto de obras inquietantes, em ambientes que parecem existir fora do tempo, onde temas como o desejo, a memória e a morte são explorados com uma sensibilidade simultaneamente barroca e contemporânea. A exposição Atravessar uma Ponte em Chamas retira o nome de um conto de Roberto Bolaño e remete para “o risco da passagem de uma margem para a outra” (MAC/CCB, 2023). 

Toda a exposição reflecte esta ideia de espaço intermédio, de uma existência fora de um tempo e um espaço, que é simultaneamente duas coisas. As obras Arcangelo, esculturas enigmáticas que nos atraem logo à entrada da exposição, são simultaneamente glorificadas e esquecidas, representações divinas e anónimos insignificantes. É uma incerteza que nos desequilibra e nos deixa em atenção, procurando um ponto de apoio que está em permanente fuga. Estas figuras mediadoras guiam-nos pela restante exposição, onde a dicotomia de sexos se esbate, criando coisas que são outras ou ambas.

Nas obras It almost seemed like a lily esta fusão acontece com colagem e desenho, representações difusas de genitais masculinos e femininos. Por vezes juntos, por vezes separados, por vezes impossíveis de dizer onde começa um e termina o outro. Esta ligação carnal, a poesia do desejo que surge como uma canção antiga e sem tempo.

Na sala seguinte esta expressão de dualidade e ambiguidade evidencia-se na obra Palindroom, a escultura ao centro. Com a sua forma fálica, remete-nos para uma representação masculina, mas a sua inspiração, um objecto utilizado na criação de cavalos é criada para ser penetrada. Como um palíndromo, é o mesmo numa direcção que outra, ou são duas coisas na mesma? De frente para a escultura, encontramos outro conjunto escultural, Met Tere Huid, que com as suas formas orgânicas evocam vulvas dos mais variados tamanhos e aspectos. Feminino, masculino, ambos e nenhum juntam-se no mesmo espaço ligados pela ponte em chamas que nos atrai e repulsa em simultâneo.

Na terceira sala as esculturas verticais lembram-nos a figura mítica que lhes dá nome, Penthesilea. Penthesilea era rainha amazona que Aquiles matou em batalha, uma figura magnífica, mulher de força imensa - algo que o contraste entre a imponência e solidez destas esculturas, conjugada com a delicadeza das peles de animais drapeadas nos evoca. O industrial e o orgânico, o rígido e o maleável e de novo o feminino e o masculino encontram-se a meio caminho, num espaço mítico.

Outro tema relevante na obra de De Bruyckere é o diálogo com a história da pintura, em particular da pintura renascentista. Na sala seguinte encontramos um desses momentos, em que a sua obra Infinitum II é confrontada com a pintura de Lucas Cranach, o Velho Catarina de Saxónia como Salomé. Neste ambiente escuro e de luz dramática, as duas obras encontram-se num diálogo através de séculos, as texturas quase vivas e orgânicas de De Bruyckere com as texturas e sombras ricas de Cranach. Também aqui o poder feminio se contrapõe ao poder masculino, ganhando força sem abdicar da sua graciosidade. É um diálogo tenso mas fluído, que consegue encontrar pontos em comum enquanto mantém a inquietação. Este diálogo é complementado por outro presente no Museu de Arte Antiga, onde a obra Arcangelo I é contraposta com as obras de Francisco De Zubarrán. A obra de De Bruyckere, um anjo caído, é contrastada com os retratos de De Zubarrán, figuras imponentes de homens eclesiásticos que nos surgem como seres divinos. Do divino que passa a mundano ao mundano que pretende ser divino, encontramos de novo esta dualidade e ambiguidade presente na exposição.

Na última sala, somos transportados para um ambiente morto com a obra ALETHEIA (on-vergeten) onde sentimos mesmo que o tempo pára e fomos levados para um lugar de mito, uma antecâmara da morte onde a vida é posta em evidência. Nada sobrevive neste ambiente industrial, estéril, repleto de neve ou será sal? As peles amontoadas formam camadas de significados, de vidas vividas, de possibilidades. Aqui guarda-se o que foi, passados esquecidos numa sala mortuária, tudo exposto como indica a palavra que dá nome à obra. O efeito é inquietante, desolador, mas também belo. É o fim de tudo, um lugar de onde não voltaremos mais.

A obra de De Bruyckere existe nestas dicotomias, entre o caos e a ordem, o vivo e o morto, o orgânico e o industrial. Entre o desolador e o belo, um pouco como a vida. Tal como a ponte em chamas que dá o nome à exposição, também ele um espetáculo belo e desolador, a passagem é transformadora, e o estado quântico entre um lado e o outro é onde existe espaço para o sublime. 

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