Procissão - Louvar i Santificar - MAAT
A arte e a loucura andam de mãos dadas. Um artista é visto como um ser meio louco, à parte do ritmo da sociedade, mas que é visto com alguma tolerância, a criatividade como desculpa para aquela pequena dose de loucura. Quão louco pode um artista ser, ou quão artista pode um louco ser? A glamorização da doença mental só vai até certo ponto, permitindo alguma divergência mas não demasiada para que não se torne desconfortável.
A exposição Procissão, patente no MAAT, estica os limites dessa tolerância, oferecendo um olhar cru sobre a doença mental - celebratório, é certo, mas sem esconder o desconfortável. Olhando para a doença mental como “um ponto de partida para o reconhecimento e legitimação”, cada obra é “oferecida como sacrifício para uma visão única e profundamente pessoal da mente, da alma e da experiência humanas” (Resende, 2024), obras que nos apresentam o artista no seu todo, sem artifícios ou partes escondidas.
Somos recebidos pela Oração de Joana Ramalho, um conjunto de peles artificiais onde tatuagens bordadas desenham a oração do Pai Nosso. Meio súplica, meio protecção, estas linhas cravadas na pele revelam uma vontade de independência, expresso na frase “venha a nós o nosso reino”.
Os estandartes de Anabela Soares são também eles celebração e desafio. Nos tecidos nobres, desenhos grotescos e frases como “sou medo, sou amarga, sou escuridão” antevêem o tumulto interior, uma vontade de desafiar as “amarras da sociedade”, aqui representadas nos pés de cimento (Resende, 2024) com uma celebração do lado negro, imperfeito e louco da artista.
No centro da sala, o Carro-céu de Cláudia R. Sampaio atrai-nos pelo seu constante movimento. A peça é um jardim em forma de carrossel, onde no centro obras de pintura giram sobre um eixo, como pensamentos dentro da mente. As obras, marcadas pelo caos colorido e mensagens dilacerantes, revelam um lugar de sonho e pesadelo, uma mente que se recusa a ficar quieta e calada por mais que se tente acalmá-la, cujo constante movimento, a constante agitação é tanto integral como destrutiva a si própria.
Encontramos também esta noção de constante movimento que muitas vezes acompanha a doença mental - e uma procissão, na verdade - no vídeo de Pedro Ventura, Correr Ceca e Meca, onde vemos o artista a percorrer um trajecto habitual sem nenhuma conclusão. Tal como o vai-e-vem da mente, este movimento que desgasta o artista (ouvimos a sua respiração ofegante, vemos a sua expressão cansada) existe por existir, sem um propósito definido ou destino final: o movimento é a razão (e a loucura).
Inquieta é também a obra de Micaela Fikoff, Insanos. Nestes lençóis do Hospital Psiquiátrico Júlio de Matos estão marcas de corpos no estremecer da dor. Este gigante sudário contém o sofrimento e a inquietação ainda vivas, ainda quentes, que deixam a sua marca indelével. Uma obra que impressiona e nos leva a reflectir sobre a dureza do processo.
Encerrando, ou melhor, envolvendo, a exposição encontramos o vídeo de Filipe Cerqueira, onde o artista declama o poema Procissão de João Villaret. Envolvendo, pois em todos os momentos somos acompanhados pelo som da voz de Filipe, que declama alegremente o poema que evoca também ele uma alegria popular simples, pura. Esta alegria oferece um contraste que nos ancora a uma realidade esperançosa, uma luz que indica uma possibilidade de paz e de apaziguamento. Este poema e a voz de Filipe, são a linha que nos guia de volta à esperança e que nos ajuda a suportar a inquietude que a exposição levanta.
Procissão é uma viagem pela multitude e complexidade da doença mental. É o processo de autorreconhecimento e sagração de algo que é difícil, doloroso, isolador e a procura de uma trégua, de uma aceitação - individual e da sociedade. É desconfortável e crua, mas é também surpreendente e esperançosa. Tal como a mente, é complexa e mutável e leva-nos para uma reflexão sobre os nossos estigmas e mitos sobre saúde mental e arte.
Numa época em que nunca foi tão fácil falar sobre saúde mental, este é o tipo de exposição necessária para abrir a conversa - sem estigmas, sem mitos, sem tabus, sem demonizar e sem dourar a pílula. Nisso o trabalho da associação Manicómio tem sido notável. O diálogo que promovem entre a arte e a saúde mental, entre a arte e o público é fundamental para criar uma sociedade mais compreensiva e mais culta. A exposição ganharia apenas com um espaço maior que permitisse mais obras de mais artistas para um diálogo mais abrangente, mas este primeiro passo não deixa de ser um triunfo para o Manicómio e os seus artistas. Esperemos em breve ver mais iniciativas destas, com mais e maior palco nas instituições nacionais.